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O que é Cultura? De Freud a Bauman: O Mal-Estar na Civilização em 3 Atos

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  • 11 de set.
  • 11 min de leitura

Atualizado: 5 de nov.

Ato I: A Origem Sólida (A Ordem Primeva e o Pacto de Repressão).


O que é Cultura? O Pacto Original (em Totem e Tabu e O Mal-Estar)


A Ordem Primeva (ou Horda Primeva) é um conceito que Freud apresentou em seu livro "Totem e Tabu" (1913). É uma narrativa hipotética, um mito científico, que ele usa para explicar a origem da sociedade, da moralidade e da religião.


A Narrativa da Horda Primeva


O Cenário Inicial: No princípio, os humanos viviam em pequenos bandos, as hordas. Cada horda era dominada por um pai tirânico e violento. Este pai possuía todas as fêmeas e expulsava todos os filhos machos, para eliminar qualquer rival.


O Ato Revolucionário: Um dia, os filhos expulsos se uniram, se revoltaram e assassinaram e devoraram o pai. Esse ato de canibalismo era crucial: ao devorá-lo, eles internalizavam seu poder.


A Consequência Imediata (Culpa): Após o ato, os irmãos foram tomados por um sentimento de culpa e remorso. O ódio que sentiam pelo pai se transformou em admiração e arrependimento. Eles perceberam que, embora tivessem se livrado do tirano, agora estavam fadados a lutar entre si pelas fêmeas, repetindo o mesmo ciclo de violência.


O Pacto Fundador (A Ordem Primeva): Para evitar a guerra de todos contra todos, os irmãos fizeram um pacto, o verdadeiro nascimento da ordem primeva. Eles estabeleceram dois tabus fundamentais:


Tabu do Incesto: Proibição de possuir as mulheres do clã (as mães e irmãs). Este é o "tabu do totem".


Tabu do Homicídio: Proibição de matar um membro do próprio clã (um substituto do pai). Este é o "tabu do assassinato".


Para consolidar esse pacto, eles elevaram o pai morto a um símbolo sagrado – o totem (um animal ou objeto que representa o clã). O totem era ao mesmo tempo adorado (como o ancestral fundador) e temido (sua violação era punida com a morte).


A Ordem Primeva é, portanto, a primeira organização social humana, nascida de um crime coletivo e sustentada pela culpa e por tabus.


Qual a Importância Desse Mito?


Freud não estava afirmando que isso aconteceu literalmente. Ele usou essa narrativa para ilustrar um conflito psíquico fundador:


A Cultura nasce da Culpa: A moral, a religião e as leis não surgem de um contrato racional, mas da necessidade de lidar com a culpa por um ato de violência primordial.


A Ambivalência Humana: A relação com a autoridade (o Pai, a Lei, Deus) é sempre ambivalente: é feita de ódio e desejo de liberdade, mas também de amor, admiração e necessidade de proteção.


A Base do "Mal-Estar": Esse pacto exige a renúncia permanente dos desejos instintuais mais primitivos (o incesto e a agressividade). É o preço que pagamos pela segurança da vida em sociedade, e essa renúncia é a fonte do "mal-estar na civilização".


Em essência, a Ordem Primeva é a explicação freudiana para o "pecado original" da humanidade: um crime que, paradoxalmente, nos tornou civilizados ao nos impor a lei e a culpa.


O Totemismo Australiano e a Sombra da Horda Primeva


Sim, ainda existem sistemas sociais que serviram de base real para a construção do mito de Freud, e os clãs totêmicos das tribos australianas são o exemplo mais célebre. Freud baseou-se fortemente nos relatos de antropólogos como Baldwin Spencer e F. J. Gillen, que estudaram povos como os Arrernte.


Aqui está como essas sociedades parecem corroborar esta tese:


1. O Totem como Ancestral Comum:


Atualmente nos clãs totêmicos australianos, cada grupo se identifica com um totem (um canguru, uma ema, uma planta, um fenômeno natural como a chuva).


Esse totem não é apenas um símbolo; é considerado um ancestral fundador. A crença central é que todos os membros do clã descendem desse mesmo ser primordial. Esta é a versão "real" do pai primordial da horda freudiana, transformado em um símbolo sagrado e compartilhado.


2. Os Tabus que Estruturam a Sociedade:


Tabu do Incesto (Exogamia): A regra mais importante era a obrigação de casar fora do próprio clã totêmico. Um homem do totem Canguru devia se casar com uma mulher de um totem diferente, como Ema ou Água. Este é o "tabu do totem" freudiano em sua forma mais pura, impedindo a posse sexual dentro do grupo simbólico da "família".


Tabu de Matar e Comer o Totem: Era estritamente proibido matar ou comer o animal totêmico do próprio clã. A violação deste tabu era vista como um crime gravíssimo, punível até com a morte. Este é o "tabu do assassinato" aplicado ao substituto paterno (o totem).


3. O Ritual que Revive o Crime: A Cerimônia Intichiuma


Este é o ponto mais fascinante e que mais se aproxima do paradoxo freudiano. Em certas épocas do ano, realizava-se o ritual Intichiuma.


Nesta cerimônia, os membros do clã realizavam danças e cantos sagrados para magicamente multiplicar seu animal totêmico como fonte de alimento para os outros clãs.


Em algumas tribos, era permitido, num ato cerimonial extremamente regulado, comer uma pequena porção do próprio totem.


A Conexão Freudiana: Para Freud, este ritual era a reencenação simbólica do banquete totêmico primordial. Era o momento em que a comunidade, de forma controlada e sagrada, revivia o ato original de matar e devorar o pai/totem, para depois reforçar os tabus que dele nasceram. Era a maneira de lembrar o crime fundador e, ao mesmo tempo, reafirmar a lei que impede sua repetição no dia a dia.


Portanto, o sistema social das tribos australianas apresentava (e ainda apresenta) uma estrutura quase literal do que Freud propôs de forma mitológica:


Um ancestral comum (o Totem/Pai).


Dois tabus fundamentais (Incesto e Homicídio do Totem) que organizam a sociedade.


Um ritual (Intichiuma) que lida com a ambivalência de desejar e venerar o mesmo objeto.


Isso não prova que a horda primeva existiu historicamente, mas mostra que Freud encontrou na antropologia sistemas sociais reais que refletiam, de maneira espantosa, os conflitos psíquicos universais que ele propunha: a culpa, a ambivalência em relação à autoridade e a necessidade de uma lei para conter a violência primordial.


A teoria freudiana, embora especulativa em sua origem, não foi tirada do nada, mas sim de uma interpretação poderosa de estruturas humanas observáveis.


Se a teoria freudiana da horda primeva parece abstrata, a arte nos oferece uma imagem chocante de seu núcleo de horror. Em "Saturno Devorando a um Hijo", Francisco de Goya materializa o mito de Cronos, o pai primordial que devora seus filhos para evitar ser destronado.


imagem da pintura Saturno Devorando a un hijo, de Francisco de Goya
Saturno Devorando a um Hijo, Francisco de Goya (1746-1828), pintado entre 1819-1823, pintura a óleo, transferida para tela (originalmente pintada na parede), Museu do Prado, Madrid, Espanha.

É uma das representações mais poderosas e perturbadoras já feitas sobre o tema. A pintura, de uma violência crua e sem adornos, vai além da narrativa mitológica para representar a essência do tirano devorador – uma figura de poder absoluto e aterrorizante que ecoa diretamente o pai da horda freudiana, aquele que deve ser eliminado para que o pacto civilizatório, paradoxalmente, possa nascer


Ato II: O Diagnóstico Estrutural (O Mal-Estar Freudiano e seu Custo Psíquico).


O Preço da Civilização: O Mal-Estar Freudiano


Se o mito da horda primeva em Totem e Tabu nos apresenta a certidão de nascimento traumática da cultura, é em O Mal-Estar na Civilização que Freud nos apresenta a fatura a ser paga por esse pacto.


Publicado em 1930, às vésperas de uma nova onda de barbárie na Europa, a obra é um diagnóstico profundo e desencantado: a civilização, nossa maior conquista, é também a fonte de um sofrimento psíquico inevitável.


O argumento central é que, para que a vida em sociedade seja possível, precisamos reprimir nossos instintos mais primitivos – a agressividade e a sexualidade desmedidas, regidas pelo Princípio do Prazer.



O Princípio do Prazer (Lustprinzip) e o Princípio da Realidade (Realitätsprinzip) são conceitos fundamentais que permeiam toda a argumentação de O Mal-Estar na Civilização. Freud os utiliza como pilares para explicar a origem do sofrimento psíquico inerente à vida civilizada.


Em troca da segurança e da ordem (o Princípio da Realidade), abrimos mão de uma satisfação plena. Essa renúncia, porém, não é um ato tranquilo; ela se acumula no inconsciente como um resíduo de frustração, gerando o "mal-estar" que dá título ao livro.


Como eles funcionam no argumento do livro:


  • O Princípio do Prazer (Inato): É a tendência fundamental do aparelho psíquico, regido pelo Id, de buscar o prazer imediato e evitar o desprazer a qualquer custo. É impulsivo, exigente e não conhece limites ou moral.


  • O Princípio da Realidade (Adquirido): É uma modificação do Princípio do Prazer, imposta pelo Ego. Ele adia a satisfação imediata, tolera um certo grau de desprazer e leva em conta as condições do mundo exterior (as regras sociais, as consequências, a segurança) para obter um prazer mais seguro e realisticamente possível, ainda que menor ou tardio.


A Conexão com o "Mal-Estar":


A cultura (ou civilização) é a manifestação social máxima do Princípio da Realidade. Para que a sociedade exista, é necessário que os indivíduos renunciem em massa à satisfação plena e imediata de seus instintos (sexuais e agressivos) demandados pelo Princípio do Prazer.


  • O pacto social freudiano é, na essência, a substituição coletiva do Princípio do Prazer pelo Princípio da Realidade.


  • O "mal-estar" é justamente o resultado psíquico dessa renúncia forçada. É o preço que pagamos, na forma de frustração, neurose e um ressentimento soterrado, por abrirmos mão de uma satisfação instintual completa em nome da segurança e do bem-estar coletivo.


Em suma, a cultura é a grande estrutura que nos força a operar sob o Princípio da Realidade, e o mal-estar é o eco do Princípio do Prazer, permanentemente reprimido, que ainda ressoa dentro de nós.


Esses dois princípios não apenas "estão lá", mas formam a base do mecanismo psíquico que gera o conflito central explorado no livro.


Freud vai além, identificando a agressividade humana como o maior obstáculo para a civilização. A famosa máxima "Homo homini lupus" (o homem é o lobo do homem) resume seu ceticismo. O mandamento "Ame o teu próximo como a ti mesmo" não é uma verdade natural, mas sim uma reação contra a nossa natureza mais profunda – uma defesa cultural construída para conter o próprio veneno que carregamos.


A cultura, portanto, é um mecanismo de controle que vira contra si mesmo, exigindo de nós um amor que não sentimos instintivamente.


Para aliviar a pressão desse conflito interno, lançamos mão de paliativos. A arte e a ciência atuam como formas nobres de sublimação, canalizando energias reprimidas para fins socialmente valorizados. A religião oferece consolo subjetivo.


Mas Freud também aponta para as saídas mais sombrias: a neurose, que é a quebra do pacto a nível individual, e até a intoxicação, que ele chama de "anestesiar a miséria". Nenhuma dessas vias, porém, oferece uma cura. O mal-estar é constitutivo; é o preço do ingresso para a vida em sociedade.


O paradoxo final, então, é este: a cultura é o que nos salva da barbárie da horda, mas é também o que nos impede de sermos plenamente felizes. Ela nos protege de uma guerra externa, mas nos condena a uma guerra civil interna e permanente. É essa contradição insolúvel que abre o caminho para entendermos a crise do sujeito no mundo contemporâneo.


Ato III: O Desmoronamento Líquido (A Libertação como Nova Ameaça na Era Baumaniana).


O Mal-Estar na Era Líquida


Se o diagnóstico de Freud era o de um conflito entre o indivíduo e uma cultura sólida e repressora, o nosso tempo apresenta um paradoxo ainda mais vertiginoso.


Vivemos o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de "modernidade líquida", uma era onde todas as estruturas que sustentavam o pacto social freudiano – a tradição, a família patriarcal, as instituições rígidas – se dissolveram em favor da fluidez, do individualismo e da liberdade de escolha.


A princípio, isso soa como a libertação definitiva. E, em muitos aspectos, é. A dissolução do "pai" simbólico e de seus tabus rígidos beneficiou incontáveis parcelas da humanidade, permitindo o florescimento de identidades, desejos e modos de vida que antes eram brutalmente reprimidos pelo pacto tradicional.


A rebeldia contra a cultura, que em Freud era um sintoma, tornou-se, paradoxalmente, o novo mandamento social: "Goze!", "Seja autêntico!", "Liberte-se!".


No entanto, é aqui que se revela a contradição crucial que ameaça a própria existência. Ao se desfazer do pacto que exigia a renúncia dos instintos, a sociedade líquida também enfraqueceu o freio social contra a pulsão de morte (Thanatos).


O que Freud via como o pilar da civilização – a repressão da agressividade – perdeu sua força. O resultado não é um paraíso de liberdade, mas uma nova e talvez mais perigosa forma de mal-estar, que se manifesta de formas concretas e alarmantes:


O Colapso Ecológico: A incapacidade de renunciar ao consumo e ao crescimento infinito em nome de um bem coletivo futuro. O indivíduo "livre" exerce seu direito ao prazer imediato, mas o custo é a destruição do lar comum, um ato de autoextermínio em câmera lenta.


A Guerra na Rede: As redes sociais se tornaram o palco onde a agressividade, agora liberada do freio do contato face a face, se manifesta em sua forma mais crua. O hate, o cancelamento e a disseminação da desinformação são a horda digital se voltando contra si mesma, sem a mediação de uma lei simbólica eficaz.


A Angústia do Ilimitado: Se na época de Freud o sofrimento vinha do excesso de repressão, hoje ele brota da ausência de limites. Sem um pacto claro, o indivíduo fica sobrecarregado com o fardo infinito de ter que construir a si mesmo a cada dia. A liberdade se torna uma sentença, gerando uma epidemia de ansiedade, depressão e solidão.


Assim, a pergunta primordial que Freud identificou no pacto social – "como impedir que as sociedades se autoexterminem?" – ressurge com uma urgência terrível. O projeto freudiano era lidar com o mal-estar de um mundo excessivamente sólido. O nosso desafio é lidar com o mal-estar de um mundo que se liquefez. A libertação do indivíduo, conquista inegável da pós-modernidade, mostrou-se uma faca de dois gumes: concedeu-nos o direito de ser quem somos, mas arrancou o chão seguro que nos impedia de cair no abismo.


O grande dilema do nosso tempo, portanto, não é mais como suportar o peso da repressão, mas como reconstruir um pacto de não-agressão e cuidado mútuo que seja tão líquido e flexível quanto nossas identidades, mas tão sólido e intransigente quanto a necessidade primordial de não nos autodestruirmos. Enfim, como ser livre sem aniquilar a nós mesmos e ao mundo que habitamos?


Consideração Final


Por fim, é fundamental esclarecer que a jornada de Freud a Bauman, narrada nestes três atos, não é uma condenação ou uma defesa da cultura, mas sim uma tentativa de diagnóstico.


Nem Freud, com sua psicanálise, nem Bauman, com sua sociologia, buscam convencer o leitor sobre a validade do pacto social; seu trabalho, enquanto cientistas, é descrever os seus mecanismos e consequências com as ferramentas teóricas disponíveis em seu tempo.


Eles não oferecem soluções fáceis. Pelo contrário, a grande herança de pensadores como eles é justamente a de abrir mais perguntas do que trazer respostas confortáveis.


É nesse espaço de inquietação e reflexão – e não no da doutrinação – que reside o valor mais puro da pesquisa e da filosofia: nos ajudar a compreender os paradoxos da condição humana, mesmo que não possamos resolvê-los.


Observação crucial


Este panorama, no entanto, seria incompleto sem reconhecer que a cultura é um diamante de infinitas facetas, e cada tradição teórica ilumina uma delas.


Se Freud e Bauman nos dão as chaves para a psicodinâmica e a forma social da cultura, é nos Estudos Culturais – com Stuart Hall à frente – que a entendemos como um campo vivo de disputa, onde os significados são negociados e as identidades, resistidas.


A visão crítica da Escola de Frankfurt (Theodor Adorno, Max Horkheimer) nos alerta para seu lado sombrio: a "Indústria Cultural" que a transforma em mercadoria para homogeneizar desejos.


Já um antropólogo como Clifford Geertz a vê como uma "teia de significados" a ser interpretada, enquanto Pierre Bourdieu desnuda seu papel como moeda de troca simbólica que gera distinção e perpetua desigualdades.


Cada um desses pensadores, à sua maneira, não oferece uma resposta definitiva, mas uma ferramenta poderosa.


Juntos, eles compõem um kit de sobrevivência para decifrar o mundo e, no fim das contas, para nos entendermos dentro dele.


Agora vamos ao último artigo desta série, onde as ideias anteriores se conectam. Antes dele fica uma reflexão: "Vivemos dentro de paradigmas, mas não sabemos que vivemos dentro deles (...) Para resolver um problema muitas vezes é preciso quebrar um paradigma". Talvez Cultura e Tecnologia sejam os paradigmas mais importantes de serem pensados nos dias atuais.



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