top of page

Do Mito Arcaico à Prestidigitação Digital: O conceito de Esclarecimento.

  • Foto do escritor: 0-1-Dial
    0-1-Dial
  • 12 de set.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 20 de out.

O Conceito de Esclarecimento


Longe de ser uma resposta cristalizada, ele é um campo de tensão filosófica. Embora seu auge como projeto histórico tenha sido no século XVIII, com seu grito pela autonomia da razão (como projeto filosófico-político do Iluminismo), pensadores como Adorno e Horkheimer nos mostram que seu impulso fundamental – a dominação da natureza através do conhecimento – é uma força arquetípica e ambivalente da condição humana, como um processo antropológico fundamental que começa no alvorecer da humanidade.


O projeto iluminista, portanto, não inventou, mas radicalizou uma dinâmica inerente à nossa espécie


No entanto, essa mesma razão que se propunha emancipatória mostrou-se mutável, capaz de se dobrar a novos fins. Assim, o abstrato ideal de “pensar por si mesmo” desceu ao mundo concreto: ele moldou sistemas educacionais, justificou revoluções, inspirou direitos humanos, mas também gerou burocracias impessoais, uma ciência sem consciência e técnicas de controle social cada vez mais refinadas.


O conceito de Esclarecimento, portanto, não descreve um monumento do passado, mas uma força viva — e ambivalente — que ainda hoje estrutura e tensiona nossa experiência no mundo.


Assim, do mito arcaico que explicava o mundo pelos deuses, passando pela prestidigitação teológica da Idade Média, pela razão humanista do Renascimento e pela fé no progresso da modernidade sólida, até desaguar na modernidade líquida dos algoritmos — que nos conhecem melhor do que nós mesmos —, os estudos da cultura convergem em um diagnóstico: o Esclarecimento não foi superado, mas se revelou uma força profundamente adaptável e mutante.


Sua essência pode ser rastreada metodologicamente como uma estrutura invisível que persiste sob novas roupagens, um código operante que, de geração em geração, continua a organizar, hierarquizar e dar sentido — por vezes, contraditório — às nossas relações sociais: das íntimas às mais coletivas.


O que é um Mito: A Primeira Máquina de Explicar o Mundo (O Embrião do Esclarecimento)


representação monte olimpo
Representação do Monte Olimpo onde, segundo a Mitologia Grega, viviam os Deuses.

Imagine o mito como o sistema operacional mais antigo da humanidade. Antes da ciência, da filosofia ou da história, os mitos eram o 'software' que os seres humanos usavam para 'rodar' a realidade. Sua função não era entretenimento; era pura sobrevivência cognitiva e social.


A Função Primária do Mito (Domar o Caos)


O mundo é, por natureza, um lugar assustador: trovões, doenças, morte, a seca que destrói a plantação, a fome. O caos e o imprevisível geram um medo paralisante.


O Trovão não é mais um ruído aterrorizante vindo do nada. É Zeus lançando seus raios porque está bravo. O Inverno e a Morte das plantas não é mais um evento aleatório e trágico. É a história de Perséfone, que passa metade do ano no submundo, e sua mãe, Deméter, fica de luto, fazendo a terra estéril.


A Criação do Mundo não é um acidente cósmico. É uma sucessão de deuses e titãs, como em Hesíodo, que lutam e dão origem à realidade.


O Mecanismo: A Lógica do Mito


Aqui está a genialidade (e a armadilha) do mito: Ele não explica pelas "leis da física", mas pelas "leis do drama". A causalidade científica (causa e efeito) é substituída pela causalidade narrativa (vingança, amor, castigo, dádiva).


Ele humaniza o universo. Os deuses têm ciúmes, amam, traem, ficam com raiva. É uma projeção da psique humana no cosmos.


O Mito surge como uma ferramenta de esclarecimento primitivo. Sua missão é: Transformar o Caos assustador em Cosmos ordenado. Dar um NOME e uma HISTÓRIA ao que era inexplicável.


O mito, longe de ser uma simples fábula ou um equívoco primitivo, é uma das ferramentas mais fundamentais para a transmissão da cultura e da tradição.


Através de narrativas simbólicas e do senso comum que ele mesmo gera, o mito encapsula valores, explica origens e orienta comportamentos de forma intuitiva e acessível, tornando o complexo tecido social compreensível.


Importante: O problema, portanto, nunca residiu no mito em si – uma estrutura neutra e potente de sentido –, mas na função que lhe é atribuída e no modo como é instrumentalizado.


Quando o mito se fecha ao questionamento, cristaliza hierarquias opressoras ou é usado para mascarar relações de poder sob um véu de inevitabilidade, sua natureza pedagógica se corrompe em dogmatismo.


Assim, a linha tênue entre a sabedoria e a dominação não está na existência do mito, mas na intenção com que ele é acionado e na liberdade que oferece – ou nega – à crítica.


O Preço da Ordem (O Fatalismo)


Ao domar o caos, o mito impõe uma ordem rígida. E é aí que mora o problema. Se a seca é um castigo dos deuses, a solução não é a irrigação ou a ciência do solo, mas rituais de sacrifício e preces.


Se o seu destino está escrito pelos deuses (o "fado" grego), como o de Édipo, então a liberdade humana é uma ilusão.


O mito cria um mundo fechado e cíclico. As mesmas histórias se repetem, o destino é imutável. Não há espaço para progresso ou revolução, apenas para a submissão à ordem estabelecida (divina e, por consequência, social).


O Grande Segredo: Mito e Esclarecimento são Parentes


Este é o ponto central que Horkheimer e Adorno revelam: O Mito já é uma forma rudimentar de Esclarecimento, e o Esclarecimento moderno se tornou um novo tipo de Mito.


  • O Mito quer esclarecer (tirar o medo dando uma explicação).

  • O Esclarecimento quer dominar (tirar o medo pelo controle total).


No final, ambos buscam a mesma coisa: eliminar o desconhecido. A diferença é o método. O mito usa histórias e magia. O Esclarecimento usa números e leis. Mas quando a razão vira uma ferramenta de dominação cega (a "razão instrumental"), ela se torna um novo mito — um mito ainda mais poderoso e perigoso, porque se disfarça de "objetividade" e "progresso".


Em Poucas Palavras


Um mito não é uma "mentira" infantil. É o sistema de explicação original da humanidade, que usa narrativas dramáticas para transformar um mundo caótico e assustador em um cosmos ordenado e significativo.


Sua função é domar o medo do desconhecido.


O preço que cobra é a submissão a uma ordem rígida e fatalista. E, no fim das contas, a ciência moderna, em sua busca por dominar a natureza, repetiu essa mesma estrutura, tornando-se um "mito tecnológico" tão impiedoso quanto os antigos.


A Prestidigitação Digital: O Fio da Ilusão da Antiguidade ao Algoritmo


Imagine um fio invisível tecendo a história do poder. Esse fio é a Prestidigitação – a arte de manipular a percepção para criar ilusão. Sua cor e seu propósito mudam com as eras, mas seu material – a psique humana – é o mesmo.


A Dialética do Esclarecimento: O Mito do Herói que Virou Monstro


Imagine o Esclarecimento (a Razão, a Ciência, o Progresso) como um herói épico. Sua missão era nobre: libertar a humanidade do medo. Medo dos deuses raivosos, medo da natureza assustadora, medo dos mitos inexplicáveis.


A MISSÃO HEROICA (Libertar pelo Conhecimento)


Para cumprir sua missão, o herói "Esclarecimento" declarou guerra a tudo que era mistério. Seu lema era: "Nada deve ser misterioso e incontrolável. Tudo pode e deve ser explicado, medido e dominado."


Ele atacou os mitos antigos, chamando-os de "superstições". Ele dessacralizou a natureza, transformando-a de uma "mãe" viva e temível em um simples "objeto" a ser estudado e explorado.


Sua arma principal era a razão instrumental: a ideia de que o pensamento é uma ferramenta (um instrumento) para calcular, prever e, acima de tudo, dominar.


O GRANDE GOLPE: O Herói Usa as Armas do Inimigo


Aqui está o primeiro "click" da dialética. Horkheimer e Adorno mostram que, para vencer o Mito, o Esclarecimento acabou se tornando a própria coisa que ele queria destruir.


Os Mitos antigos já eram uma tentativa primitiva de esclarecer o mundo. O mito do trovão, por exemplo, tenta explicar um fenômeno natural assustador. Ele dá um nome e uma história ao que era caótico.


Ao lutar contra o mito, o Esclarecimento não abandonou a estrutura do mito; ele apenas criou um novo tipo de mito: o Mito da Razão Totalitária.


O "Fado" e o "Destino" dos mitos antigos foram substituídos pelas "Leis da História", "Leis da Economia" e "Leis da Ciência" — sistemas tão impiedosos e inquestionáveis quanto os deuses que eles substituíram.


A QUEDA (O Herói se Corrompe)


O herói, em sua busca obsessiva pelo controle, começa a aplicar sua lógica de dominação não só à natureza, mas a tudo e a todos.


Dominação da Natureza:


  • A natureza vira um recurso.

  • Florestas não são sagradas, são "madeira estocada".

  • Rios não são divindades, são "potencial hidrelétrico".


Dominação dos Seres Humanos:


  • Se a natureza é um objeto, as pessoas também podem ser.

  • A sociedade vira uma "máquina".

  • Os indivíduos viram "recursos humanos".

  • A razão instrumental calcula a eficiência de um campo de concentração com a mesma frieza com que calcula a eficiência de uma fábrica (Faulcout).


Auto-Dominação: Por fim, nós internalizamos essa lógica. Reprimimos nossas emoções, nossos desejos, nossa intuição — tudo que é "irracional" e "incontrolável" — para nos tornarmos seres puramente racionais, eficientes e previsíveis. Nos tornamos robôs de nós mesmos.


O PARADOXO FINAL (A Dialética)


Eis a virada de chave, o "click" final:


O Esclarecimento, que nasceu para libertar os homens do medo do desconhecido, acabou criando uma nova e mais aterrorizante prisão: um mundo totalmente administrado, controlado e esvaziado de significado, que gera uma nova barbárie.


A tentativa de exterminar o mito resultou no retorno do mito sob a forma de uma razão cega e totalitária. O herói, em sua luta contra o monstro, olhou tanto no abismo que ele mesmo se tornou o monstro.


Em Poucas Palavras


A Dialética do Esclarecimento é a ideia de que a razão (o "Esclarecimento"), quando usada apenas como uma ferramenta de dominação e controle (a "razão instrumental"), vira contra a própria humanidade.


Ela nos liberta dos mitos antigos, mas acaba criando um novo mito, ainda mais perigoso: o mito de que tudo (a natureza, a sociedade, as pessoas) é apenas um número, um objeto, um recurso a ser explorado. No final, essa busca cega pelo controle nos leva de volta à barbárie, só que agora com tecnologia de ponta.


[IMAGEM HIROSHIMA]


É a explicação filosófica de por que o século XX, o mais "esclarecido" da história, também foi o século dos campos de extermínio e das bombas atômicas.


A luz mais brilhante pode projetar as sombras mais escuras.


bomba explodindo

A história do Esclarecimento pode ser visualizada em 3 atos, para facilitar nosso entendimento


ATO 1: A Prestidigitação Sagrada (O Feiticeiro-Xamã)


representação de um Xamã antigo
Representação de um xamã em ritual antigo.

Na Antiguidade, a prestidigitação era a tecnologia do sagrado.


O Xamã que "retirava" uma pedra do corpo de um doente (usando truque de palma) não era um charlatão. Ele era um curandeiro. Sua ilusão era um placebo poderoso, um ato de prestidigitação terapêutica que reforçava a crença da tribo e a autoridade do líder espiritual.


Os sacerdotes egípcios que "abriam as portas dos templos com um gesto" (acionando mecanismos ocultos) usavam a prestidigitação para produzir assombro e fé. A ilusão era o combustível do Mito, a prova visível de um poder invisível.


Seu pacto era de autoridade: A plateia não consentia em ser enganada; ela se submeteria à ilusão como manifestação do divino.


ATO 2: A Prestidigitação-Arte-Espetáculo (O Mágico de Palco, surgimento do Cinema e Broadcast)


Emile Reynaud operando o praxinoscópio.
Emile Reynaud operando sua criação, o praxinoscópio.

Com o Esclarecimento, a prestidigitação migrou dos templos para os teatros e novas formas de espetáculo, como o cinema. Ela foi dessacralizada.


Figuras como Robert-Houdin e Émile Reynaud não vendiam milagres. Eles vendiam maravilhamento. O truque da cartola ou do Théâtre Optique era uma celebração da habilidade humana, da engenhosidade mecânica.


Era a razão instrumental a serviço do assombro lúdico. A plateia pagava para ver a técnica (o "como") triunfar, num pacto de consentimento puro: "Eu sei que é truque, e adoro isso!"


Este foi o breve e brilhante momento em que a prestidigitação foi Luz Pura, antes da grande captura.


ATO 3: A Prestidigitação-Digital (O Feiticeiro-Algoritmo)


um anjo com ecrãs digitais ao seu redor

E então, o sistema despertou. A mesma lógica de dominação do Esclarecimento – a razão como ferramenta de controle – identificou na prestidigitação a arma definitiva.


A prestidigitação digital é o retorno do Mito, mas agora com potencial altamente escalável e a frieza da ciência.


O Xamã Antigo se tornou o Algoritmo de Feed. Ele não cura corpos, mas controla comportamentos. Ele conhece seus medos e desejos melhor que você, e "puxa" do seu bolso não um coelho, mas um anúncio hiper-personalizado, uma notícia que confirma sua raiva, uma simulação de realidade.


O Sacerdote do Templo se tornou o Guru do Coach Digital. Ele não opera mecanismos ocultos em portas de pedra, mas alavanca os mesmos vieses cognitivos que o mágico usa.


Ele vende a ilusão da transformação pessoal instantânea, o "passe de mágica" para o sucesso, explorando a mesma vontade de acreditar que o peregrino antigo tinha.


O Pacto de Consentimento foi quebrado. Você não paga um ingresso para o espetáculo. Você é o produto no espetáculo. A ilusão não é mais para maravilhar, mas para manter você engajado, consumindo e, acima de tudo, previsível.


A partir desse instante inaugural, a prestidigitação atravessou o século XX moldando percepções por meio das mídias. O cinema transformou a ilusão em narrativa totalizante, mesclando técnica e mito. O rádio levou essa voz encantatória a todos os cantos, enquanto a televisão consagrou o espetáculo como rotina doméstica.


A cada linguagem, a prestidigitação se refinava, disfarçada em novos formatos. No ambiente digital, contudo, a multiplicação é exponencial: já não se trata de um truque único, mas de milhões de truques invisíveis embutidos em algoritmos, interfaces e fluxos de dados.


Cada clique, cada rolagem, cada notificação é uma pequena mágica calculada para capturar a atenção, naturalizando o encantamento em escala industrial.


O PARADOXO FINAL: O Círculo se Fecha


A prestidigitação digital é a fusão monstruosa do Mito e do Esclarecimento.


Ela usa a ferramenta mais esclarecida que existe – a ciência de dados, a psicologia cognitiva – para criar o mais eficiente e personalizado sistema mitológico da história.


Como o Mito Antigo, ela oferece explicações simples para medos complexos (o "inimigo político X" é a causa de todos os seus problemas).


Como o Esclarecimento Corrompido, ela reduz você a um conjunto de dados manipuláveis, um "recurso" a ser otimizado para o engajamento.


O Sabiá (a genuinidade, a arte pura) é silenciado pelo grasnido amplificado do Urubu Diplomado (a plataforma, o algoritmo, o guru), que domina a "terra" digital.


Em Poucas Palavras (Resumo de Bolso)


A prestidigitação é a arte de criar ilusão. Começou como tecnologia do poder sagrado (o Xamã), tornou-se brevemente uma arte pura de maravilhamento (o Mágico), e hoje foi capturada para se tornar a engrenagem central do poder digital (o Algoritmo).


A "prestidigitação digital" é o uso não-consensual das técnicas do mágico – a manipulação da percepção – pela lógica de dominação do Esclarecimento, criando um novo mito totalitário, personalizado e em tempo real.


E assim, a trilogia se completa: do Mito que queria explicar, ao Esclarecimento que queria dominar, até a Prestidigitação Digital que é a síntese maligna de ambos.



Chegamos ao fim desta primeira trilha, mas não ao limite da investigação. Cada artigo desta série foi alicerçado sobre um rigoroso respaldo teórico e científico — da psicanálise freudiana à filosofia crítica, da antropologia à teoria da tecnologia — porque acreditamos que ideias profundas exigem fundamentos sólidos.


Se há um eixo que guiou esta jornada, foi a compreensão da relação dialética fundamental entre Cultura e Tecnologia: a primeira, o reino do abstrato, do significado e do simbólico; a segunda, a força de sua materialização concreta no mundo.


Essa tensão produtiva, raiz da própria teoria da percepção nas artes, é o motor que move tanto um ritual ancestral quanto um algoritmo de feed.


Este não foi um exercício de opinião, mas um esforço metódico para mapear as estruturas invisíveis que moldam nossa experiência.


Que este conjunto de ferramentas conceituais não seja um ponto de chegada, mas uma bússola para nossas próprias descobertas. A jornada do pensamento, quando bem orientada, está apenas começando.


Este tópico encontra-se no livro Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer, 1948. Se quiser explorar o review do livro no Blog, clique aqui.



Comentários


bottom of page