A Narrativa Clássica e o Caos dos Conteúdos Digitais
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- 26 de set.
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de out.
Nos dias de hoje, o termo "narrativa" tem sido usado indiscriminadamente para descrever uma vasta gama de conteúdos midiáticos. De filmes e séries a reportagens, postagens em redes sociais e discursos políticos, tudo parece se encaixar sob o guarda-chuva de "narrativa".
No entanto, esse uso generalizado do termo dilui seu verdadeiro significado, afastando-se de sua origem mais rigorosa, principalmente no contexto clássico, onde filósofos como Aristóteles definiram o conceito com precisão.
Mas precisamos retomar uma certa distinção: nem todo conteúdo pode ser chamado de narrativa no sentido estrito. Aristóteles, em sua obra Poética, nos oferece um arcabouço claro para entender o que de fato constitui uma narrativa, o que pode nos ajudar a separá-la de outras modalidades comunicativas que hoje são erroneamente categorizadas como tal.
A Narrativa Clássica Aristotélica
Para Aristóteles, a narrativa é fundamentalmente uma imitação da ação humana (mimesis). A narrativa não é apenas um amontoado de fatos, mas sim uma estrutura organizada em torno de um início, meio e fim. Ela envolve um encadeamento lógico de eventos, onde cada parte está relacionada causalmente à seguinte, criando um todo coerente.
Na tragédia, o gênero que Aristóteles mais se debruçou, a narrativa deve ser capaz de evocar emoções como a piedade e o medo, levando o espectador à catarse.
Os principais elementos dessa definição incluem:
Personagem (Ethos) – As pessoas que protagonizam a ação e cujas decisões impulsionam os eventos.
Enredo (Mythos) – O arcabouço dos eventos, estruturado de forma a apresentar conflitos e resoluções.
Tempo e Espaço – A narrativa segue uma sequência temporal e se desenvolve em um espaço específico.
Objetivo e Conflito – A narrativa sempre lida com personagens perseguindo objetivos, enfrentando obstáculos e resolvendo problemas, o que lhe confere coesão e propósito.

Nem todo conteúdo pode ser chamado de narrativa no sentido estrito. Aristóteles, em sua obra Poética, nos oferece um arcabouço claro para entender o que de fato constitui uma narrativa, o que pode nos ajudar a separá-la de outras modalidades comunicativas que hoje são erroneamente categorizadas como tal.
Nessa visão, a narrativa é uma construção que exige um processo de reflexão sobre a ação humana e suas consequências. Ela é um relato que nos conduz por meio de um arco dramático, que revela significados profundos sobre o comportamento humano, a moral e o destino.
A Confusão na Comunicação Atual
Atualmente, o termo "narrativa" é amplamente utilizado para descrever qualquer tipo de discurso ou relato, independentemente de seu caráter estruturado ou dramático. Isso tem criado confusão entre o conceito clássico de narrativa e outros tipos de comunicação midiática que não se enquadram nessa definição aristotélica. Vamos separar algumas dessas modalidades:
1. Conteúdo Informativo
Notícias, reportagens e podcasts são muitas vezes chamados de "narrativas", mas, tecnicamente, tratam-se de relatos informativos. A principal função desse tipo de conteúdo é transmitir fatos, dados e eventos da forma mais objetiva possível. Aqui, o objetivo não é criar uma imitação artística da ação humana ou induzir emoções específicas, mas sim informar o público.
Embora alguns formatos jornalísticos ou documentais utilizem técnicas narrativas para tornar o conteúdo mais engajante, eles não têm necessariamente uma estrutura narrativa clássica. No máximo, podem utilizar uma moldura narrativa para organizar o conteúdo de uma maneira mais atraente, mas seu propósito final é a informação, não a catarse.
2. Opinião e Discurso Persuasivo
Em campos como a política, as "narrativas" são comumente associadas a discursos que buscam influenciar a opinião pública. No entanto, é mais apropriado pensar nesses conteúdos como discursos persuasivos ou retórica. A retórica, conforme descrita também por Aristóteles em sua obra Retórica, é uma técnica usada para convencer ou persuadir através da argumentação, apelo emocional e lógica.
Diferente da narrativa, o discurso persuasivo não se preocupa necessariamente com uma estrutura dramática ou causalidade de eventos. Seu foco está em moldar a opinião e as emoções do público, seja através de argumentos lógicos, ethos (credibilidade) ou pathos (apelo emocional). É importante diferenciar isso de uma narrativa, que visa contar uma história com um começo, meio e fim coesos.
3. Conteúdo de Entretenimento Fragmentado
Em tempos de redes sociais, vemos a proliferação de conteúdos curtos e fragmentados, como vídeos de TikTok, memes, tweets e posts virais. Estes raramente constituem uma narrativa no sentido clássico.
Ao invés de criar uma imitação contínua e estruturada da ação humana, esse tipo de conteúdo é episódico, baseado em momentos isolados que visam respostas emocionais imediatas, como riso, choque ou empatia.
Embora muitos desses conteúdos possam ser criativos e eficazes em transmitir uma mensagem, eles são essencialmente flashes de informação ou entretenimento. A falta de continuidade e a ausência de um arco dramático os distanciam da narrativa tradicional.
4. Propaganda e Publicidade
A publicidade e a propaganda são frequentemente classificadas como "narrativas" porque empregam elementos visuais, sonoros e verbais para contar histórias.
No entanto, seu objetivo principal é a persuasão comercial. Embora possam usar técnicas narrativas para criar empatia ou identificação com a marca, o fim último da propaganda é vender um produto ou serviço, não transmitir uma reflexão sobre a condição humana.
Aqui, vemos novamente a diferença entre uma narrativa verdadeira, que envolve a transformação de personagens e a resolução de conflitos, e um discurso comercial, que pode adotar uma moldura narrativa, mas está mais focado em influenciar comportamentos de consumo.
Separando as Definições
Portanto, ao adotar uma perspectiva aristotélica, podemos ver que o uso moderno do termo "narrativa" muitas vezes se distancia de seu significado original.
Enquanto hoje o termo é usado de forma quase universal para descrever qualquer sequência de informações ou eventos, a narrativa clássica exige mais do que uma simples coleção de fatos ou opiniões. Ela demanda uma estrutura clara, personagens, conflitos e uma resolução que revele algo sobre a experiência humana.
Ao distinguir a narrativa dessas outras modalidades de comunicação, recuperamos seu poder como uma forma elevada de arte e reflexão, que vai além da mera transmissão de informações ou persuasão. A narrativa verdadeira nos conecta a um entendimento mais profundo de quem somos e como agimos no mundo, algo que não pode ser reduzido a um simples slogan, post ou discurso de venda.
Nunca confunda Storytelling com Narrativa.
Cada estratégia de contar estórias tem sua hora e lugar. E nenhuma é melhor que a outra, elas apenas funcionam melhor em contextos de comunicação diferentes.
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